Lições da vida a bordo

Por: Redação -
08/09/2014

Esse mês tive uma experiência de voltar a viver a bordo. Muitas lembranças me vieram à mente e fizeram-me ter certeza de que esta é realmente a vida que quero ter. Só quem um dia foi pro mar e viveu no mar e do mar, pode entender o que digo. É como um bichinho que pica e não existe antídoto. Aliás, alguns blogs gringos chegam a mencionar sobre o “sail bug”.

Uma vez escrevi sobre a “doença da sem casa”, ou homesickness, uma crise que pode atacar as mulheres quando se mudam para o mar e não conseguem se adaptar à vida longe da família e do cotidiano que levavam em terra firme, sentindo-se muitas vezes culpadas e egoístas por abandonarem os familiares. Porém, o contrário também pode ser verdadeiro.

Depois de se acostumar com a vida a bordo, voltar para a correria de uma grande cidade, também é bastante chocante e de difícil adaptação. Isso é o que vivo hoje. Constantes questionamentos e comparações são inevitáveis.

Com a maturidade, o medo de dar um salto no vazio aumenta, mas ao mesmo tempo sabemos que a segurança de um emprego fixo é ilusória. Aliás, o acúmulo material também é uma ilusão para chegar a um lugar em que se pode estar AGORA, e sem todos esses bens materiais que tanto corremos atrás quando vivemos em uma cidade grande, querendo e achando que necessitamos cada vez mais e mais. A vida no mar é muito diferente. Os valores materiais são baseados nas necessidades.

Fiquei 10 dias a bordo neste último mês e é incrível como a saudade bate até mesmo nas horas de lavar a louça ou ir ao banheiro. Quando você aprende a viver com pouco e se satisfaz com isso, o prazer é enorme.

Certa vez, comprei uma máquina de lavar roupa “hand machine” e me divertia a cada lavada. A hand machine, ou máquina de mão, é pequena e tudo que você tem que fazer é girar a manivela. Você não gasta energia, usa pouca água e ainda faz um exercício para os braços! Porém, ela passa longe do conforto de uma lavadora convencional. Aliás, vale falar, se você tem grana e pode viver na marina, a vida é outra… Água e energia à vontade, como um apartamento flutuante.

Passei meus dias a bordo de um Tatoosh 42, em Bocas del Toro, Panamá. Um veleiro bastante espaçoso e com uma navegada bem confortável. Em Bocas, existe uma comunidade cruzeirista bem expressiva. O curioso é que toda quarta-feira quem comanda a net (conversa diária e matinal pelo VHF com as novidades do dia) é uma mulher. Toda quarta é dia de “lady´s net”. E não pense que os papos são sobre beleza. A mulherada comanda a rodada com muita participação masculina.

Um dos papos que tenho constantemente com mulheres que vivem a bordo é como garantir a renda. Nessas horas, a criatividade é o que vale. Umas aprendem a cortar cabelo, outras fazem bijuterias para vender, há as que costuram velas e capas de colchões. As mais antenadas trabalham na indústria náutica instalando equipamentos, limpando cascos, fazendo verniz no interior de barcos, trocando teca dos deques… Mas todas têm algo em comum, vivem o AGORA. Mesmo não possuindo renda fixa, preferem arriscar-se em não ter trabalho tradicional do que viver um cotidiano previsível longe do mar.

Porém, viver a bordo não significa passar perrengue ou viver fedida, não! Tudo é uma questão de organização. Nunca abri mão de banho, de perfume, de bijuterias… Questão de escolha. Assim como já falamos por aqui sobre o fato de não precisar cortar o cabelo curto só porque foi morar a bordo.

A simplicidade está presente em todos os dias a bordo e o desperdício de água, energia e espaço não existe. A essência da vida a bordo é a economia e a simplicidade. Viver com pouco, ser feliz e ainda ajudar a salvar o planeta. Tudo se recicla. Orgânicos são jogados no mar. A mesma água que cozinha a batata, pode cozinhar o arroz.

É essa consciência e esse hábito que tanto tem aparecido em campanhas sociais, sustentáveis e nas bandeiras dos politicamente corretos. Não temos dúvidas que aplicando esse exemplo no dia a dia de qualquer um, poderíamos ter uma esperança de um mundo melhor, porém infelizmente muita gente ainda se prende ao “parecer sustentável” e não realmente ser. A maioria realmente só se toca a mudar de hábitos e a se privar de comodidade, quando sente que pode ser prejudicada. Vivemos na cidade, temos tudo à vontade e não nos privamos de nada porque a falta não faz parte do nosso cotidiano.

Por isso acredito que a criança que vive a bordo tende a ser um ser humano melhor, mais humanizado, mais preocupado com o próximo.

Bom voltar a viver a bordo para valorizar o muito que temos em uma cidade grande. Quando voltei a São Paulo, fui tomar banho e senti-me culpada por abrir o chuveiro e ver cair aquela água toda enquanto me ensaboava. Fechei a torneira e pensei, quero ser e não “parecer”. Esse é o segredo, ser consciente dos desperdícios sem necessariamente sentir a falta. Lições que aprendi no mar e levo para minha vida em terra ou onde quer que esteja.

Hoje estou aqui, amanhã não sei.

Obs: Quem quiser ter a experiência de um live aboard no veleiro Brava, o Tatoosh 42, entre em contato com o capitão Manuel Alves pelo e-mail [email protected]. Abaixo um pouco lady´s net por VHF.

 

Foto: Arquivo Pessoal

 

Marcela Rocha é instrutora de mergulho, jornalista, locutora de rádio, velejadora nas horas vagas e, acima de tudo, muito feminina

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