Experientes velejadores revelam bastidores de travessia inédita da Passagem Noroeste

Beto Pandiani e Igor Bely contam como foi cruzar do Pacífico ao Atlântico, em um labirinto de gelo perigoso

16/07/2023

O pequeno catamarã de 25 pés sem cabine, batizado de Igloo — da dupla Beto Pandiani e Igor Bely — há muito tempo desistiu de navegar por águas calmas e abrigadas. Foi este o barco escolhido para cumprir a travessia entre os oceanos Pacífico e Atlântico, a chamada Passagem Noroeste.

A cada ano, os comandantes do Igloo inventam novos lugares para uma jornada insólita — quase sempre por mares distantes e hostis, com desafios piores que aqueles que enfrentaram anteriormente.

 

Entre 2007 e 2008, por exemplo, eles encararam uma jornada de nove mil milhas entre o Chile e a Austrália, cruzando todo o Oceano Pacífico. Isso tudo a bordo de um também singelo Hobie Cat, de 25 pés. Essa foi, aliás, a primeira travessia do tipo realizada por alguém a bordo de um pequeno multicasco sem cabine.

Anos antes, então ao lado de outro parceiro, Betão — como o velejador é conhecido — enfrentou o temível Cabo Horn, numa viagem de cinco meses entre Puerto Montt, no Chile, e o Rio de Janeiro. Assim, tornou-se também o primeiro velejador a chegar à Antártica em um barco sem cabine, com direito a cruzar o Estreito de Drake.

 

Já foram oito expedições até agora, cada uma mais espetacular que outra. A mais recente, concluída em setembro de 2022, foi a travessia da lendária Passagem Noroeste. Este é um labirinto de gelo estreito e naturalmente perigoso, entre o Pacífico, no Alasca, e o Atlântico, na Groenlândia, 800 quilômetros acima do Círculo Polar Ártico.

 

Possivelmente, essa foi a jornada mais ousada do velejador em quase três décadas de aventuras. Para isso, Betão, de 65 anos, e Igor, 39, não embarcaram em um barco motorizado, com casco de aço ou alumínio, próprio para encarar os blocos de gelo.

 

Está aí a maior dificuldade e a ousadia do projeto. Eles percorreram os canais gelados (um inimigo implacável) movidos apenas pela força dos ventos e, em alguns momentos, dos próprios músculos.

A fim de criar outra forma de propulsão, além do vento, para ultrapassar o gelo, ancorar ou acessar o píer de uma comunidade Inuíte (povo indígena esquimó), o catamarã foi equipado com um recurso extra. Um sistema de pedais a bordo, que permite deslocamentos sem vento a uma velocidade de 2 nós. O sistema os ajudou também a esquentar o corpo, nos dias mais frios.


Especial, o Igloo é um barco de fibra de carbono, com reforços com fibras de kevlar, materiais que resultam em mais resistência e leveza, perfeito para velejar com ventos fracos. O casco, monobloco (ou seja, uma peça única, sem travessas parafusadas), tem três metros de boca, um mastro com 11,5 metros de altura e um par de hidrofólios, pequenas “asas” submersas com as quais a embarcação se eleva acima da linha da água, atingindo velocidades superiores.

 

Após a largada em 19 de julho, os velejadores partiram da canadense Tuktoyaktuk, no norte do Oceano Ártico, em direção a Kaktovik, no estado americano do Alasca, onde a Passagem Noroeste se inicia. Foram 44 dias de navegação até o Arctic Bay, um povoado remoto no norte do Canadá, período em que ficaram permanentemente expostos ao frio, com a temperatura em torno de zero grau, sem contar a sensação térmica negativa e a umidade.

Durante o trajeto, pegamos ventos fortes, vento fraco e calmaria. Enfrentamos neve e até ficamos presos no gelo. Este ano foi atípico na região, por isso atracamos até em comunidades Inuítes, à espera de um tempo favorável – Beto Pandiani, velejador

Frente a um quadro como esse, Beto Pandiani e Igor Bely usaram durante a travessia calçados impermeáveis e roupas apropriadas como por exemplo macacão e camadas de baixo de pena de ganso. Contudo, as vestimentas segundo o experiente velejador não aguentavam a umidade forte da região. Ainda assim, sua equipe conseguiu enfrenetar bem o desafio.

Pequeno, mas valente, o Igloo enfrentou as adversidades com bastante estabilidade. Deslizou suavemente pelas passagens estreitas entre as ilhas. E, quando o gelo se tornou um obstáculo mais difícil, a dupla de aventureiros lançou mão do sistema de pedais, pondo os músculos para funcionar pedalando o barco.

Beto Pandiani e Igor Bely estavam a bordo de embarcação equipada

Para não ter a resistência minada, os dois — além de estar bem mentalmente — tiveram de investir na preparação física. Betão malhou durante um ano e meio numa academia de São Paulo, enquanto Igor — cidadão dos sete mares, filho de mãe francesa e pai russo — manteve-se em atividade na Terra do Fogo, onde mora, a bordo do Kotic II, veleiro de aço de 62 pés.

Beto Pandiani e Igor Bely levaram na travessia a mesma dieta das outras duas travessias que encararam juntos, à base de comida liofilizada, pois o barco não comporta muito peso. E para beber, os velejadores optaram pela compra de galões de 15 a 20 litros de água durante as escalas. Porém, para uma emergência, o barco tinha um dessalinizador.

Dessa vez, tínhamos nossa alimentação foi mais luxuosa. Tínhamos sopas, barras de cereais, castanhas, nozes e barras energéticas. Além disso, levamos também iogurtes, pães e queijos – Beto Pandiani, velejador

Entre os equipamentos indispensáveis à viagem, além do VHF, a Arycom, provedora de sistemas de comunicação, forneceu aos velejadores um telefone via satélite de banda larga, com o qual os dois mantinham contato com a civilização usando o satélite Inmarsat-C, e mais dois telefones de voz Iridium e um rastreador Spot X, que conta com função SOS e tem bússola integrada, entre outros recursos. Aliás, o barco dispunha de internet e Wi-Fi, que permitia o envio de mensagens por WhatsApp.

 

Batizado de Rota Polar, o projeto tinha como objetivo discutir as mudanças climáticas, provocadas pelo rápido degelo do Ártico e seus impactos socioambientais. Fechada pelo gelo nos últimos séculos, a Passagem Noroeste vem se tornando cada vez mais navegável com o aquecimento global que atinge a calota polar e o consequente degelo.

Não por acaso, o pequeno Igloo cruzou com alguns barcos pelo caminho, como três navios turísticos, dois barcos da guarda costeira canadense e dois pesqueiros, além do Fraternidade, veleiro de 65 pés com o qual navegador Aleixo Belov (ucraniano de nascimento e baiano de coração) está rodado o mundo. Eram embarcações com cascos de aço e alumínio, preparadas para enfrentar o gelo.

 

Com o intuito de produzir um documentário sobre as alterações que vem sofrendo, seja pela ação deletéria dos homens ou da natureza, Beto Pandiani e Igor Bely filmaram toda a travessia. Ele ainda acredita que todo esse tráfego na região, irá ocasionar algum impacto ambiental rem relação à vida marinha.

 

O fotógrafo e documentarista de aventura Al Andrich, especialista em locais inóspitos, e o fotógrafo, documentarista e ativista ambiental Alexandre Socci, da Tocha Filmes, registraram alguns trechos da viagem. Além do documentário, o projeto Rota Polar irá resultar na produção de artigos e na publicação de um livro que retratarão o impacto ambiental, social, econômico e cultural do rápido desgelo do Ártico.

Vale ressaltar que o explorador norueguês Roald Amundsen (1872-1928) foi primeiro a fazer essa travessia, em 1903, a bordo do Gjøa, embarcação de pequeno porte, a remo ou a vela. Com uma tripulação de seis pessoas, liderada por Amundsen, o Gjøa atingiu o Oceano Pacífico em 1906, após uma viagem de mais de três anos.

 

O sonho dos navegadores dos países de Atlântico Norte era abrir a Passagem Noroeste para o tráfego marítimo comercial, o que diminuiria, por exemplo, a distância entre Londres e Tóquio de 23 mil quilômetros (via Cabo da Boa Esperança, contornando a África) para apenas 12 mil. Mas o frio, a ameaça de gigantescos icebergs e as violentas tempestades de neve sempre foi um entrave para a concretização desse sonho.

 

Agora, com o degelo da calota polar, essa rota finalmente está se tornando transitável, com a promessa de diminuição do curso marítimo entre o continente asiático e o europeu. Ainda há muito gelo pelo caminho, como testemunharam Beto Pandiani e Igor Bely durante a travessia.

Durante a viagem, eles não ficaram completamente sozinhos. Ao contrário, tiveram como companhia os mais diversos animais, de pássaros a três espécies de baleias. As focas eram visitas mais constantes. Quando o vento não soprava com força, algumas delas chegavam a nadar ao lado do barco. Ursos brancos também surgiram no caminho. Por fim, foram premiados com um espetáculo inesquecível: dezenas de baleias-brancas (belugas) brincando despreocupadamente nas águas transparentes da Baía Leopold.

 

Foi nesse clima que, dia 4 de setembro, Betão e Igor avistaram o povoado de Artic Bay, onde a travessia em um pequeno barco sem motor alcançou a chegada. “Eram 3 horas da manhã e estávamos a apenas 6,4 milhas de Artic Bay. A viagem estava concluída. Jogamos a âncora e o Igloo se aquietou. Demos um grande abraço e rimos”, registou Betão em seu diário de bordo, colocando ponto final em mais uma linda história.

A Passagem Noroeste estava finalmente conquistada e outras façanhas virão. Podem anotar que, logo, logo eles inventam outro lugarzinho bom para se aventurar, certamente outra viagem inédita e única. Definitivamente, o barco desses dois comandantes não nasceu para navegar por águas calmas.

 

Náutica Responde

Faça uma pergunta para a Náutica

    Relacionadas

    Eletrodomésticos de luxo da Elettromec estarão no Rio Boat Show 2024

    Ao todo, sete produtos da marca serão expostos no evento que acontece de 28 de abril a 5 de maio, na Marina da Glória

    Siga Empreendimentos exibe churrasqueiras e acessórios no Rio Boat Show 2024

    Visitantes poderão conferir produtos em aço inox e madeira teca fabricados pela Vitti

    Fabianne Domingos expõe decorações e enxovais para barcos no Rio Boat Show 2024

    Especialista em projetos personalizados para o mercado náutico também decorou oito barcos expostos no salão carioca

    Especialistas do setor de combustíveis comandam palestra no NÁUTICA Talks

    Pâmela Barreto e Jean Leone conduzem papo sobre o diesel Verana e a gasolina Podium na série de palestras que acontecem no Rio Boat Show 2024

    Almirante Carlos Roberto detalha novos barcos da Marinha no NÁUTICA Talks

    Principais projetos estratégicos em andamento, construções do navio polar e de nova fragata serão destrinchadas durante o Rio Boat Show 2024