Equipe percorre 6 mil km de jet e entra para a história dos rallys náuticos
Expedição do Araguaia Jet foi de Roraima a Mato Grosso, passando por mais de 30 rios com direito a raias venenosas e trechos de 'pancadas' na água
A história dos rallys náuticos ganhou, em 25 de agosto, um dos seus capítulos mais importantes. Isso porque o grupo Araguaia Jet, com sede em Barra do Garças (MT), fez história ao percorrer 6 mil quilômetros a bordo das motos aquáticas, em um trajeto que começou nas águas do rio Branco (RR) e se encerrou no rio Araguaia, na casa dos ‘jeteiros’.
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Daniel Vilella (27), Vinícius Castro (30), Fabrício Carvalho (38), Anderson Torres (38), Weverton Sousa (39), Roberto Sacchetti (45) e Moacir Couto Filho (48) partiram de Boa Vista, capital de Roraima, na fronteira com a Venezuela, rumo à Barra do Garças, no Mato Grosso, em 2 de agosto — uma viagem que durou nada menos do que 23 dias.
A jornada, contudo, foi muito além dos recordes na água e abriu novos horizontes não só a cada um dos quase 30 rios percorridos, mas, principalmente, na percepção de vida dos sete aventureiros. Afinal, ao longo do caminho, o grupo se deparou com muito mais do que belas águas e lindas paisagens.
Como o Araguaia Jet começou
Barra do Garças abriga a Serra do Roncador, conhecida por ser um local místico, com portais que levam a outros mundos. Moacir Couto, um dos integrantes do Araguaia Jet, nunca atravessou um desses portais, mas ainda assim encontrou em Barra do Garças um outro universo, do qual não abre mão: o das águas.
Eu sou a apaixonado por isso. As águas, o rio… eu tenho uma identificação muito grande– conta
E a paixão vem de berço. Sua mãe, como ele mesmo diz, “é nascida na beira do rio Araguaia”, assim como ele. Morar em uma cidade banhada pelo rio, que dispõe de mais de 2000 km de curso, fez com que, desde a infância, os barcos e as canoas já se fizessem presentes — mas o sonho mesmo era o jet.
A gente ainda andava de barco, canoa, mas sempre sonhávamos em ter um jet pela quantidade de água na seca. O rio baixa muito, e o jet precisa de pouca água para navegar– explica Moacir
Em meados de 1998 veio o primeiro, “um RX prata com vermelho, de dois tempos, da Sea-Doo”, como relembra Moacir. O modelo já foi substituído. Hoje ele desbrava os rios do Mato Grosso com o que chama de “jet trator”: um Sea-Doo 170, responsável por andar os 6 mil km “sem dar nenhum problema”.
“Em 2021, eu tinha um sonho, ainda de criança, de sair aqui da minha cidade e ir até o mar. De Belém (PA) até a Ilha de Marajó (PA). Eu planejei isso por dois anos, consegui dois amigos para me acompanhar e conseguimos o feito”, conta, orgulhoso.
A partir daí, nascia o Araguaia Jet, com a ambição de mostrar a riqueza e a biodiversidade da região do rio Araguaia ao país inteiro. Em 2023, o grupo estendeu uma expedição de Barra do Garças a Belém, até Miritituba (PA), cerca de 4 mil km a mais — o ponto de partida para algo ainda maior.
“Foi isso que despertou na gente a vontade de fazer esse rally, que com certeza é o maior de água doce já registrado. Começamos a projetar a viagem, fazer a poupança, para viabilizar que as embarcações estivessem em Roraima, lá na divisa com a Venezuela”, revela o jeteiro sobre a decisão.
Cara, coragem e planejamento
Moacir conta que “mesmo sem conhecer nada”, ele e a equipe do Araguaia Jet entraram em contato com outros amantes da navegação, buscando meios de concretizar a travessia. Assim, conseguiram programar uma logística para a expedição que envolvia, também, a ida dos jets para Rio Branco, em Roraima.
As embarcações andaram durante uma semana de balsa, de Barra do Garças a Roraima, com uma parada em Santarém (PA). Os aventureiros, por sua vez, pegaram um voo em Brasília — cerca de 600 km de Barra do Garças –, rumo à Boa Vista, com duração aproximada de 3h30.
Para viabilizar essas e outras despesas, o grupo conta com uma poupança, em que cada integrante deposita um valor mensal, utilizado futuramente para a realização de viagens como essa — em que o saldo começou a ser contabilizado cerca de um ano e meio antes da expedição.
Para se ter uma ideia, uma travessia como a de Boa Vista a Barra do Garças, com cerca de 6 mil quilômetros, gerou um gasto de aproximadamente R$ 17 mil só em combustível, com cerca de 2,5 mil litros usados. Desse total, a gasolina “mais cara foi $ 8 e a mais barata $ 5,80”, como revela Moacir.
“Sabíamos que seria possível chegar na nossa cidade pelos rios que passaríamos, mas havia uma complicação muito grande por estarmos em um período de estiagem, agravadas pelo momento de queimadas que passa o Brasil, que fazem com que a água do rio diminua”, explica.
Gente da água
Já na primeira etapa do percurso, Moacir e o grupo se surpreenderam com o estado de Roraima. “A mídia mostra uma Roraima que parece ter uma dificuldade muito grande, mas é uma cidade planejada, organizada, que merecia todos os olhares — até náutico”, opina.
Tenho certeza de que é uma cidade muito gostosa de se viver. Tem boas águas, um plano diretor. Me impressionou muito– destaca
A equipe do Araguaia Jet tinha o conhecimento de que na região norte, ponto de partida, “tudo é feito pela água”, o que facilitaria o acesso a recursos. No trajeto, inclusive, passou pela cidade de Afuá, na Ilha de Marajó, onde tudo é feito de bicicleta, já que o município é construído em cima de palafitas, devido às cheias do rio Amazonas.
A data escolhida para a travessia driblou o período de temporadas, assim, o grupo não encontrou dificuldades para se estabelecer em pousadas. Muitas pessoas, inclusive, ofereceram lugares para que os ‘jeteiros’ dormissem à beira do rio.
A maioria dos restaurantes ficavam em flutuantes no rio. A logística deles está toda ligada a isso, então não tivemos dificuldades. Ainda assim, levávamos alimentos no jet e sacos de dormir. Estávamos preparados– garantiu
Moacir conta que “dos 26 dias, pode ter certeza de que em 24 comemos peixe”. Dentre tantos rios percorridos, a equipe pôde observar uma ampla diversidade desses animais, de espécies como pirarara e piraíba. Além deles, os búfalos se destacaram no horizonte. Até porque o norte do país concentra 62% do rebanho nacional da espécie.
No caminho, uma pausa para observar a cultura local, como as balsas carregadas de gado. Moacir explica que “os animais eram retirados da fazenda quando a água do rio subia, e retornavam depois, quando a maré baixava”.
Os jeteiros também passaram perto do povo indígena Yanomami e sentiram medo do ataque de piratas e da linha de tráfico de drogas que circula pela região, muito próxima à fronteira com a Venezuela. Bem por isso, estavam respaldados pela Marinha do Brasil, que foi devidamente comunicada sobre a expedição.
A natureza também reserva desafios
Com uma travessia tão longa, não é difícil imaginar que o caminho reservou, também, seus desafios. Um deles parece “história de pescador”, como define o próprio Moacir — mas foi, de fato, vivido por ele.
Em um trecho entre Xambioa (TO) e Pau D’arco (TO), o grupo precisou empurrar os jets, devido à falta de água no canal. Foi aí que um momento de tensão se instaurou no ar. Isso porque, como conta Moacir, as águas estavam repletas de raias: “não vimos menos de 50”.
Subíamos no jet e ficávamos com medo de descer, porque não tínhamos médico para um caso de ferroada– relembra
As raias de água doce possuem de um a quatro ferrões ósseos em formato de serra, com “dentes” voltados para trás. O ferrão contém toxinas e é utilizado como forma de defesa do animal ao se sentir ameaçado, o que acontece quando, por exemplo, alguém pisa nele, como demonstra o vídeo a seguir:
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Esse, contudo, não foi o único empecilho da viagem. Embarcações como os jets são capazes de navegar mesmo em pouca água, mas, por outro lado, “trazem a complexidade de entrar pedra na turbina”, como explica Moacir.
No percurso de Manaus à Parintins, ambas cidades no Amazonas, o jet de um dos integrantes teve justamente um problema na turbina. A embarcação chegou a ser levada à Santarém (PA), mas 300 km depois, não resistiu. Vinicius precisou de uma balsa para voltar para casa junto com seu jet, um problema que atrasou o percurso do grupo.
A natureza também não poupou a equipe de sua imprevisibilidade. Moacir explica que “a maior dificuldade de rios como o Amazonas e o Tapajós é que, durante um certo horário do dia, o vento do mês de agosto cria ondas como do mar”.
Muito por isso, houve dias em que os jeteiros fizeram até 300 km levando as famosas ‘pancadas’ do rio, saindo de uma e logo entrando em outra. “Olhava para trás e não via nenhum companheiro”.
O Araguaia Jet contabilizou uma navegação de cruzeiro entre 60 e 65 km/h, mas as ‘pancadas’ dificultaram bastante a navegação. Para se ter uma ideia, em alguns trajetos o grupo levou quase 3h para percorrer 20 km, navegando entre 5 km/h e 10 km/h.
Com tamanha instabilidade, com o tanque cheio, os jets chegaram a completar cerca de 170 km, número que caía para 100 km nos momentos de dificuldade na navegação — uma média de 2,5 km por litro, conforme avalia Moacir.
Realizações que valem mais
Em meio aos desafios, eles, que queriam divulgar o lugar em que moram, acabaram descobrindo um Brasil que também merece atenção.
Moacir não deixa de ressaltar que a convivência com pessoas, principalmente no Amazonas, foi uma das coisas que mais o marcou durante a travessia. Observar o modo de vida de seres humanos que, como ele conta, “vivem em uma situação tão limitada, tão adversa, em casas de palafita” o fez refletir.
A gente ficava olhando e pensando ‘eu tenho coisa demais’, ‘reclamo por tão pouco’– relembra
Para desviar das pancadas, o grupo recorria aos chamados ‘furos’ dos rios. Neles, se instalavam espécies de cidades, em percursos que lembravam uma rua. Em um desses furos, o grupo ouviu uma música rolando, parou para abastecer e recebeu o convite: um almoço.
Quando passávamos, eles gritavam para que parássemos. Encantava ver a felicidade deles, a humildade, a hospitalidade que nos ofereciam– destaca o jeteiro
A travessia, como um todo, foi para Moacir como a “realização de um sonho”. Ao avistar Barra do Garças se aproximando, ele não esconde que ficou emocionado. Durante o trajeto, o aventureiro precisou trabalhar aspectos como ansiedade, saudade e, principalmente, o medo “a todo instante”.
A saudade dos dois filhos, de 10 e 9 anos, muitas vezes abasteceu seu coração quando as pancadas dos rios impunham dificuldades, assim como receber a ligação dos dois durante todos os 23 dias de viagem.
Eu não troco uma viagem como essa por qualquer uma no mundo que me oferecerem– revela
“Eu nunca pensei que eu, um morador de uma cidade do interior, poderia realizar um sonho desse, de navegar pelos rios do Brasil, cortar o país ao meio em uma época de estiagem. É uma experiência única”, comemora Moacir.
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