A primeira mulher solo na Cape2Rio: velejadora brasileira fará história na travessia África-Brasil

A bordo de um veleiro de 31 pés, Theodora Prado vai encarar 30 dias sozinha no Atlântico Sul rumo ao Rio de Janeiro

21/12/2025
Foto: Henry Daniels

Nada de fogos, estourar champagne ou pular ondinhas. Enquanto o mundo celebra a chegada de 2026, uma mulher brasileira estará fazendo história a bordo de um simples veleiro de 31 pés no meio do Atlântico Sul, numa das regatas mais tradicionais do mundo, a Cape2Rio.

Quem topou esse desafio alucinante foi a velejadora de Ubatuba Theodora Prado, que embarcará em 27 de dezembro na maior aventura da sua vida: 30 dias seguidos numa regata oceânica de travessia em solitário, partindo de Cape Town, na África do Sul, até o Rio de Janeiro, no Brasil.

Foto: Instagram @theodoraprado/ Reprodução

O percurso tradicional é de aproximadamente 3.500 milhas náuticas (cerca de 6.480 km) em mar aberto, cruzando o Atlântico Sul. A prova, que completará 50 anos em 2025, é marcada por grandes ondulações e ventos muito, muito, muito fortes — na casa dos 30 nós (aproximadamente 55,5 km/h).

 

O certame acontece a cada três anos e reúne diversos velejadores de todo o planeta e de diversos níveis. A regata é disputada por várias classes de veleiros, que vão desde embarcações de cruzeiro com boa performance até multicascos de alta velocidade.

Regata Cape2Rio. Foto: Cape2Rio/ Divulgação

No entanto, se engana quem pensa que a velejadora brasileira tem uma ampla prática em regata competitiva — muito pelo contrário. Com experiência exponencial no mundo dos deliveries e charters, essa será a primeira vez que ela fará uma travessia em solitário.

 

De quebra, assim que pisar no barco, içar as velas e começar a velejar, se tornará a primeira mulher do mundo a disputar a Cape2Rio em solitário. Tradicionalmente, a competição — disputada há mais de meio século — é realizada em tripulação.

Foto: Instagram @theodoraprado/ Reprodução

Para quem não conhece a figura, pode parecer uma loucura — mas não para quem trocou o estressante mercado financeiro pelo mundo náutico. Aos 23 anos e vindo de um burnout no seu antigo emprego, Theodora decidiu mudar o rumo da própria vida e deixar que os ventos soprassem o seu destino.

 

Em apenas quatro anos, começando do zero, já completou três travessias do Atlântico, sem contar as várias outras viagens mar afora. Agora, aos olhos do mundo, está prestes a começar a maior delas. Sem tripulação e sem pausas. Apenas ela, o veleiro e o oceano.

 

Em entrevista à NÁUTICA, Prado revelou como tem sido a preparação para a prova, os bastidores para a regata e quais são as suas expectativas.

Como tudo começou

Com a flexibilização da pandemia e saída do seu emprego no mercado financeiro, a garota se mudou para Ubatuba, litoral norte de São Paulo, e começou a desenvolver seu surfe. Pertinho dali, ficava a escola de vela do Tio Spinelli, velejador de mão cheia. Ela pensou: “por que não?”.

Theodora Prado e José Spinelli. Foto: Instagram @theodoraprado/ Reprodução

Foi amor à primeira vista. Como se tivesse encontrado o que a fazia viva. Ali, foi plantada a sementinha que germinou anos depois e que resultou nessa destemida travessia à África do Sul. Ela conta que carrega muitos dos ensinamentos do instrutor até hoje. “Se algo merece ser feito, merece ser bem feito”, parafraseou Prado, sobre um dos ensinamentos mais valiosos do seu professor de vela.

 

Inclusive, foi durante uma travessia entre África do Sul e Brasil, na qual ela foi tripulante de Spinelli, que seus olhos brilharam mais do que nunca.

Expedição para a África do Sul realizada com o Tio Spinelli. Foto: Instagram @theodoraprado/ Reprodução

Desde então, esse trajeto nunca saiu da sua cabeça. Mas até chegar aonde chegou, foram muitas aulas. “O tio ensina muita coisa. Ele entra para fazer aula de vela, mas aprendemos a ser um ser humano melhor”, relembrou a velejadora, de dentro do seu barco em Cape Town.

Velejar é a cerejinha do bolo. Eu tenho que saber muitas outras coisas antes– reiterou

Segundo a brasileira, Spinelli está a caminho do país africano para o Natal. “Eu já falei para ele: ‘acelera esse barco para você chegar antes da minha largada. Eu tenho que ter o seu abraço para poder sair’”.

O companheiro de travessia

“Alex, você sabe de algum barco que esteja vendendo aí na África do Sul que eu possa alugar para fazer a regata”, perguntou Theodora à amiga ainda em 2024, quando a Cape2Rio de 2025 era apenas um objetivo deveras distante. Mas, começava ali, o primeiro passo de uma travessia.

 

Alex — leia com sotaque inglês — é uma moradora local da África do Sul, país que a brasileira já foi e voltou tantas vezes que chega a perder a conta. Para a sorte dela, sua amiga realmente descolou um veleiro que cabia no orçamento e que tinha sido projetado justamente para regata.

Royal Cape One-Design, veleiro que será utilizado pela velejadora na Cape2Rio. Foto: Henry Daniels

Fabricado em 1981, o veleiro escolhido foi o Royal Cape One-Design, de 31 pés, que conta com um histórico empolgante. Ele já realizou a Cape2Rio duas vezes e ficou bem classificado em ambas: terceiro e sexto lugar, respectivamente. Porém, as condições em foi encontrado era preocupante.

Parado há mais de um ano, precisou de uns bons reparos. Não à toa, Theodora está em Cape Town há mais de 40 dias só para garantir que tudo fique nos conformes. A embarcação se encontra ancorada numa instalação da cidade, e o dono dessa estrutura ajuda ela nessa missão, visitando pessoalmente o veleiro e examinando-o detalhadamente.

Theodora Prado a bordo do Royal Cape One-Design. Foto: Henry Daniels

O plano A era participar da regata com um veleiro da Classe 40, mas alugá-lo era praticamente tão caro quanto comprar outro modelo. Sendo assim, Theodora Prado confiou muito na expertise da Alex para comprar o 31 pés, mesmo sem nem conhecer a embarcação pessoalmente.

O meu [veleiro] era realmente muito barato e eu sentia que [a C40] não era o meu barco– explicou Prado

O antigo proprietário ainda facilitou o pagamento com algumas parcelas, devidamente quitadas no meio de 2025.

Melhor prevenir do que remediar

O lema é segurança em primeiro lugar. Cada detalhe revisado visa a segurança e facilitar a rotina durante a competição. Entre os afazeres, estão tarefas como troca de estaiamento, revisão dos mastros, conferir conexões, troca de instrumentos e muito mais.

Foto: Henry Daniels

Theodora Prado também destaca o set de velas da embarcação. Segundo a velejadora, elas são praticamente novas e já vieram com o barco, mas passaram por reformas que aperfeiçoaram o instrumento. Tudo em prol da segurança e praticidade, visto que, em solitário, ninguém pode correr riscos.

 

Um “detalhe” muito importante: este modelo não tem banheiro. Logo, não recebe nenhuma entrada de água salgada — e nem saída. A única escapatória é a bomba de porão, que serve para remover a água acumulada, não para introduzi-la.

Theodora Prado e o veleiro Royal Cape. Foto: Henry Daniels

O Royal Cape também não possui pia — ou seja, tudo será lavado do lado de fora. O botijão de gás, na verdade, é um fogareiro de camping (um fogão portátil, geralmente pequeno, simples e leve, originalmente projetado para ser usado em atividades terrestres, como acampamentos ou mochilões). Tudo para otimizar a rotina e a segurança a bordo.

 

Outra peculiaridade é a ausência de motor de centro, utilizando painéis solares e um gerador portátil para a baixa demanda de energia. A ideia é se prevenir de uma pane elétrica. Ela ainda está com um motor de popa — mas esse a velejadora só pretende usar quando atravessar a linha de chegada, no Rio de Janeiro.

Rotina de atleta

Nada melhor do que experimentar a sua primeira longa navegação em solitário do que numa regata de peso. Mesmo com meses de preparação, Theodora Prado aponta que ainda sente um friozinho na barriga quando pensa na Cape2Rio.

Theodora Prado em Sardenha, na Itália. Foto: Instagram @theodoraprado/ Reprodução

No dia a dia, a ideia é otimizar o tempo e “guardar gás” para a corrida. Ela pretende consumir alimentos liofilizados e vitaminas, apenas o básico para seguir com energia durante os 30 dias de navegação, sem nenhum tipo de escala — afinal, é uma regata.

Sem muita regalia. Talvez na primeira semana tenha algumas frutas, alguns legumes, alguma coisa assim, mas a ideia é não perder muito tempo fazendo a comida– revelou à NÁUTICA

Desde que chegou em Cape Town, Prado começou a treinar na academia para ganhar ainda mais massa muscular. “Eu sei que até chegar no Brasil vou perder muito músculo, muita energia. Então é importante se movimentar, como estou fazendo agora”, completou.

Theodora Prado durante a Semana de Vela de Ilhabela. Foto: Instagram @theodoraprado/ Reprodução

Mais do que exercitar o corpo, é importante preparar a mente para uma missão que, o que tem de satisfatória, tem de desgastante. Para financiar a regata, Theodora Prado trabalhou dobrado e pagou tudo com o dinheiro fruto dos charters. O resultado?

Teve um momento que minha cabeça pifou– revelou a velejadora

“Eu fiquei na minha casa acho que só três semanas. O resto do ano inteiro trabalhando full-time, sem folga”, disse sobre sua rotina. Pensando nisso, ela conta com um acompanhamento psicoterapêutico que está sendo crucial para enfrentar as desconfianças dela mesma.

Theodora Prado e sua mãe. Foto: Instagram @theodoraprado/ Reprodução

“Não sei se é uma coisa só minha, mas às vezes, duvido um pouquinho de mim. A gente precisa confiar mais no nosso trabalho, no que estamos fazendo. E realizar essa terapia ajudou muito a enfrentar meus medos”, destacou. Segundo a velejadora, os maiores dramas vêm justamente por estar longe de casa e da família.

Dá medo de encarar, sabe? Você não sabe se vai dar certo, se vai conseguir, se vai ter o que você precisa-refletiu

Para entrar na história

Por mais que não esteja preocupada com títulos, a brasileira não esconde o peso de ser a primeira mulher a participar da Cape2Rio em solitário. À NÁUTICA, a velejadora destacou o histórico de mulheres referenciais na África do Sul — a Alex, por exemplo, já cruzou o Atlântico sozinha — e ressaltou o que esse momento representa.

Foto: Henry Daniels

Espero que de alguma forma inspire mais mulheres a se descobrirem, porque a navegação solo é muito especial. É uma meditação plena, um auto desafio – sintetizou

Prado compara o ato de navegar em tripulação com um time de futebol, com quem você pode comemorar e compartilhar bons momentos e dificuldades. Já correr, solo, segundo ela, é como disputar uma maratona, na qual tem que enfrentar sua mente o tempo inteiro.

Semana de Vela de Ilhabela. Foto: Instagram @theodoraprado/ Reprodução

“Eu não estou indo com o barco mais veloz, não sou a melhor velejadora do Brasil, mas estou fazendo acontecer. Essa é a diferença, e espero que inspire mulheres — não só na regata solo, mas também em outros esportes e outros cenários.”, enfatizou a competidora.

Que isso possa inspirar, porque garanto que se eu conseguir, outras pessoas conseguem– afirmou Prado

Veleiro na água e pés no chão

O objetivo é grandioso, mas a expectativa é simples: chegar à Baía de Guanabara, ponto final do trajeto. Com relativamente pouco tempo de vela, a navegante reconhece que não figura entre as favoritas. Entretanto, a meta não é essa.

Quero chegar em segurança, com a mente sã, corpo saudável e o barco em bom estado. É [uma competição] mais comigo mesma, por isso ‘solitário’– reiterou

“Sou bastante competitiva, mas compreendo que o meu veleiro é pequeno e que não sou uma velejadora desde criança. Estou competindo com pessoas experientes e que tem embarcações muitos melhores”, completou.

Preparação para a Cape2Rio a bordo do Royal Cape One-Design. Foto: Henry Daniels

Por mais que não tenha expectativa de vitória, existe uma chance. Como a regata ocorre com barcos mistos, tem um mecanismo chamado rating. O sistema matemático é usado para nivelar a competição entre modelos que, de outra forma, seriam desiguais devido ao tamanho, design e velocidade.

 

Dadas as condições do Royal Cape One-Design, o rating de Theodora Prado é bem favorável: ele é pequeno, com muito tempo de vida e as velas são simples — e isso joga a favor da brasileira. Sendo assim, mesmo que algum competidor atravesse primeiro, o rating a deixaria mais próxima dele.

Tenho que fazer o meu trabalho de casa aqui bem feito. Se eu fizer, tenho chances– sonha a competidora

Depois da tempestade, vem a calmaria

Os tempos de mercado financeiro não trouxeram apenas problemas. Atualmente, a ubatubense admite que o antigo trabalho a ajudou na mentalidade de hoje, principalmente na gestão da sua empresa de charters e deliveries, que já conta com clientes internacionais.

É engraçado porque eu saí do mercado financeiro para não lidar com números, mas uma boa parte desse trabalho é fazendo números para esses clientes– relembra a empresária

“Tudo aconteceu muito rápido para mim, mas é porque o mercado financeiro me preparou para ter essa cabeça profissional, essa mentalidade empresarial de lidar com as coisas. Isso faz toda a diferença”, garantiu Theodora Prado.

Foto: Instagram @theodoraprado/ Reprodução

E, segundo ela, esse é o seu presente e futuro. Após o Cape2Rio, a brasileira já tem outros planos. Um deles é nacionalizar o Royal Cape, para que ele esteja legalmente registrado e apto a navegar permanentemente em águas brasileiras sob a bandeira do Brasil.

Esse barco fica no Brasil e vou trabalhar nele. Depois, temos outros planos de descer para o Sul e fazer Antártica. Mas por enquanto, durante o finalzinho do verão e inverno, a gente vai ficar no Brasil– revelou

Assim que isso for finalizado, vem o descanso. Depois de muitos dias longes de casa e trabalho incessante, o plano é pegar um mês de folga para visitar a família e amigos. “Não é que eu velejo em solitário que eu não gosto de pessoas”, brincou a velejadora.

Foto: Henry Daniels

Nesse meio-tempo, ela ainda voltará à África do Sul a trabalho, para uma nova travessia enquanto busca o barco de um cliente. Esse vai e vem pode parecer cansativo, mas quem vive garante que está sonhando acordado. E, no que for depender dela, outras pessoas devem sentir esse gostinho.

Saiam pra rua realizar os sonhos. Isso é muito importante e é o que mantém a gente viva– encerrou

Fica a torcida para que o Cristo Redentor, assim como o Rio de Janeiro, a receba de braços abertos ao final da travessia. Ainda vamos ouvir muito falar sobre ela.

 

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