Aventura em alto-mar: conheça os irmãos que abriram mão do conforto para morar em um veleiro
Mineiros de Uberlândia, há cinco anos os irmãos Caio e Carol Galvão decidiram viver nos mares do mundo; confira
Mesmo morando a mais de 1000 quilômetros de distância da praia mais próxima — que fica em Guarapari, no Espírito Santo — o mar sempre foi a paixão dos irmãos velejadores Caio Henrique Galvão, de 29 anos, e Carolina Galvão, de 26 anos, que nasceram e cresceram em Uberlândia, no Triângulo Mineiro.
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Assim, desde 2007, quando o pai comprou um veleiro em Ilhabela, no litoral de São Paulo, por puro prazer, para desfrutar das temporadas de férias com a família e, quem sabe um dia, sair velejando mundo afora, os dois passaram a acalentar o sonho de morar a bordo do barco — um veleiro de 40 pés, chamado Beluga.
De repente, aquele sonho que parecia impossível para dois jovens em idade escolar (ele estudava Engenharia; ela, Ciências Sociais) começou a ganhar contornos de realidade. “Em 2017, papai anunciou que iria vender o Beluga”, conta Carol — como é chamada por todos.
A conversa em casa era que os custos estavam altos para manter um barco de ‘veraneio– Carol Galvão
“Mais para frente, talvez, ele pensaria em comprar outro”, emenda Caio. Quase na mesma hora, os irmãos velejadores decidiram que iriam assumir os gastos e passar a morar a bordo. Dito e feito: seis meses depois, os dois — mais a gata Lili, que recolheram da rua, um mês antes — deram vida ao desejo.
Irmãos velejadores a bordo
“Foi uma mudança bem radical. Eu estava com 19 anos. O Caio, com 23. Tranquei a matrícula na faculdade, abrimos mão do conforto e da segurança da casa paterna e fomos morar no veleiro, que ficava ancorado em uma cidade que mal conhecíamos”, lembra Carol.
Antes, tiveram de resolver algumas pendências em Minas e estudar um pouco sobre como ganhar dinheiro no mar e com o barco. Eles investiram na formação, fazendo cursos básicos de vela oceânica, tirando habilitações e intensificando o aprendizado na prática através de pequenas viagens pela costa brasileira.
Com tudo resolvido, partimos com mala e cuia para Ilhabela, a fim de experimentar a vida a bordo, com o desafio de manter os custos de um barco de 40 pés e desbravar tudo o que a vida náutica tem a nos oferecer– Caio Galvão
A maior roubada, certo? Nada disso. “Foi a melhor decisão de nossas vidas”, afirmam os irmãos velejadores, unânimes. Isso não significa que a adaptação tenha sido fácil — muito pelo contrário.
80% de perrengue e 20% de curtição
O Beluga é um belo e confortável veleiro de 40 pés. Tem três camarotes de casal, sendo um suíte, dois banheiros, cozinha equipada com geladeira, fogão de duas bocas, forno e utensílios domésticos, além de um cockpit confortável e de um grande salão com uma gaiuta com 70 x 70 centímetros.
Sob o salão, concentra-se praticamente todo o peso do barco: a quilha, dois tanques de água, tanque de combustível e baterias. Isto resulta num barco estável e equilibrado. Ou seja, o Beluga oferece conforto e espaço de sobra para até seis pessoas viverem a bordo.
Porém, como todo barco, exige dedicação — leia-se cuidados de manutenção e limpeza, que são permanentes. Dá muito mais trabalho do que cuidar de uma casa. Isso faz com que os comandantes do barco-residência se tornem, também, mecânicos, eletricistas, encanadores, pintores, reparadores de velas e por aí afora.
Foi o que aconteceu com Caio e Carol, que, ao morarem a bordo do Beluga, tiveram de arregaçar as mangas, dentro da categoria “cuido eu mesmo”, e aprender na raça todos os serviços de manutenção, da costura de uma vela à troca do motor, até se tornarem autossuficientes na manutenção.
Descobri que morar a bordo era 80% de perrengue e manutenções e 20% de curtição. Nossa rotina passou a ser fuçar, desmontar, montar de novo, ler manuais, fóruns e dar um jeito de resolver o problema– Carol Galvão
“Quando mudei para o barco não sabia distinguir entre uma chave de fenda e uma phillips. Hoje, já sei fazer todas as manutenções preventivas em motores, mexer em bombas elétricas, cuidar e tratar de madeiras, pintura, velas, mastreação, infiltração de água, sistema de leme e por aí vai. E a cada dia aprendo mais um pouquinho”, diz ela.
Tudo que você não fizer terá que pagar para alguém fazer, e custa caro mandar fazer fora. Sendo assim, limpeza do casco, manutenção da parte hidráulica, elétrica, pintura, tudo está na sua mão– Caio Galvão
Inclusive, Caio foi obrigado a ativar o modo Macgyver, embora já tivesse mais noção de manutenção preventiva e corretiva que a irmã quando foi morar a bordo.
Liberdade sem solidão
Mas se, por um lado, a rotina dos irmãos que moram no Beluga não é muito fácil porque inclui cuidados permanentes com a manutenção do barco — as tarefas nunca acabam — por outro lado é uma vida muito livre e mais saudável, além de ecologicamente correta.
Só comemos peixes frescos, estamos em contato direto com a natureza, reutilizamos tudo o que é possível e usamos outras formas de energia, como painéis solares– Carol Galvão
O aprendizado em relação à natureza merece parágrafo à parte, segundo ela. “A constante observação do que nos cerca, do que nos molda, torna os nossos sentidos cada vez mais aguçados”, acredita a velejadora. Que demonstra na prática o que isso significa.
“Estou agora, às 2h30 da manhã, no meu turno da madrugada, com a lua cheia iluminando meu caderno e as ondas respingando no meu rosto. Ao mesmo tempo, observo as nuvens que me cercam e que vão trazer vento ou chuva.
E o que dizer da ação dos sargaços, fazendo o mar perder aquele tom azul turquesa, à medida que a temperatura da água vai caindo? E das estrelas, que me guiam toda noite? São muitas mudanças acontecendo ao mesmo tempo, e a gente vai se conectando a esse universo mágico”, descreve Carol.
Pouca experiência, muita vontade
Para levar o plano adiante (e se fazerem respeitados), no entanto, os irmãos velejadores tiveram de enfrentar problemas bastante práticos, como a falta de experiência na vela e a necessidade de dinheiro para manter a vida a bordo.
“Toda oportunidade e qualquer ventinho era motivo para velejar, não ficávamos mais de dois dias parados na mesma ancoragem. Começamos a sair para navegar com o Beluga todos os dias. Testávamos o barco em todas as configurações, em todos os tipos de vento e de mar.
Além disso, aproveitamos todas as oportunidades para navegar em outros barcos, seja em regatas (estávamos em todas) ou simples passeios”, acrescenta Carol. “Com isso, fomos pegando cada vez mais gosto pela vela. Se já gostávamos, fomos ficando apaixonados”, resume.
Depois dessa primeira etapa, de se estabelecer a bordo e de se sentirem confortáveis para velejar, chegou a hora de monetizar, de trabalhar para ganhar dinheiro. Para isso, inicialmente, eles passaram a alugar o barco para passeios turísticos na região de Paraty, os chamados charters.
“Nessa época, estávamos morando em Ilhabela. Montamos um folheto com as informações do passeio, selecionamos fotos bonitas do barco navegando, pegamos nossas bicicletas e saímos pela cidade para tentar parcerias com hotéis, pousadas, agências de turismo e restaurantes. Além disso divulgamos nossos passeios na internet”, lembra Caio.
Foi um início bem difícil. Só conseguíamos um passeio ou outro. O que no fim das contas foi bom, pois nos deu tempo de aprender sobre navegação– Carol Galvão
Nesse período, os dois começaram a participar de suas primeiras regatas em Ilhabela, e a fazer amigos. “Tínhamos um grupo, todos moravam a bordo em seus veleiros, e nos encontrávamos sempre que possível, ora para passear pela vila da cidade, ora para comer alguma coisinha ou beber uma cerveja na rua do Meio, mas principalmente para velejar e participar de regatas”, diz Caio.
Experiência a bordo
Já mais experientes na arte da navegação, os dois decidiram fazer delivery de barcos, ou seja, levar e trazer embarcações a vela pelo mundo, como profissionais de leme. A primeira oportunidade surgiu em 2018, quando uma skipper experiente de Ilhabela, a Nadia Meggon, os convidou para ser tripulantes de um delivery.
Infelizmente, só havia uma vaga, e os irmãos velejadores decidiram de comum acordo que o Caio iria participar da travessia. “Foi um delivery de um 50 pés saindo de La Rochelle, na França, com destino a Nova York, passando pelas Ilhas Canarias e por Guadalupe, no Caribe. Uma experiência incrível”, descreve o velejador.
No Brasil, como delivery, os dois fizeram alguns trechos pequenos entre o Guarujá e Angra dos Reis ou Rio de Janeiro. Depois, em 2021, foram do Guarujá até Rio Grande, no Rio Grande do Sul, dividindo o barco com o proprietário. Até que surgiu um convite maior, feito por um empresário brasileiro: uma travessia do Panamá às Ilhas Cayman, no comando de um catamarã de 43 pés.
Ficamos responsáveis por tudo, como skippers: pela navegação, pela comida, pela hotelaria e tudo no barco. Foi uma oportunidade também para aprofundar os estudos sobre meteorologia, rotas de navegação e todo o resto que uma travessia dessa demanda. E deu tudo certo– Caio Galvão
Deu tão certo que, meses depois, eles foram convidados para prosseguir viagem. Primeiro, levaram o barco das Ilhas Cayman a Fort Lauderdale. Depois, foram para as Bahamas, passando por Cuba. Em seguida, fizeram a travessia do Atlântico Norte rumo ao Arquipélago dos Açores, com escala em Bermudas, um percurso de 1890 milhas náuticas.
Por fim, o 43 pés apontou a proa na direção de Fernando de Noronha, com a missão dos irmãos de aportar em segurança, poucos depois, em Paraty, depois de percorrer 8100 milhas. A bordo, quatro pessoas: Carol, Caio, o proprietário do catamarã e um tripulante com experiência com barcos a motor, mas pouco versado na vela.
Valeu a pena
Dá para resumir de modo preciso e conciso o aprendizado adquirido nesses seis anos de vida a bordo de uma casa flutuante: aprendizado completo!
“A vida a bordo nos ensinou também a valorizar as coisas mais simples, como tomar um banho quentinho, e a viver intensamente o tempo presente, porque tudo muda de uma hora para outra”, disse a velejadora.
No mesmo momento que fazemos amigos e amores para a vida toda sabemos que, no dia seguinte, poderemos levantar âncora e só voltar a nos ver dali a muitos anos. Então, procuramos aproveitar cada segundo– Carol Galvão
Assim, ela segue exultante com a (nova) vida que abraçou, ao trocar a casa por um barco e, com ele, sair para conhecer os mares do mundo, ao lado do irmão.
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